Jesus era judeu. Praticava a Lei e os Profetas. Frequentava sinagoga. E participava das festas de Israel. Caminhava em romaria pelo menos uma vez ao ano para Jerusalém para a celebração da Páscoa. Na última vez em que participou com os seus discípulos surpreendeu a todos quando tomou nas mãos um pedaço de pão e pronunciou: “Este é o meu corpo, partido em favor de vocês”. Os discípulos não entenderam muito bem o que estava acontecendo, e logo ficaram ainda mais perplexos quando Jesus ergueu uma taça de vinho e declarou em tom solene: “Este é o meu sangue, derramado em favor de vocês”.
Repentinamente explodiram em suas consciências alguns fragmentos do que Jesus lhes havia ensinado ao longo dos três anos em que caminharam juntos: “meu corpo é verdadeira comida, meu sangue é verdadeira bebida”; “eu sou o pão da vida”; “eu sou o pão vivo que desceu do céu, qualquer um que comer desse pão viverá para sempre”; “o pão que dou ao mundo, para que possam comer e viver, sou eu mesmo, um ser de carne e sangue”.
Enquanto as palavras de Jesus percorriam os labirintos de sua consciência e penetravam fundo em seu espírito, aqueles homens foram atravessados por uma avalanche de memórias confusas. Olhavam a mesa da Páscoa e lembravam de Moisés, da morte dos primogênitos egípcios, e principalmente do sangue dos cordeiros sacrificados naquela noite de libertação. Passaram pela tela de sua memória as inúmeras vezes quando Israel celebrou a Páscoa para lembrar que por causa do sangue do cordeiro aspergido sobre as portas e janelas de suas casas os hebreus foram salvos do juízo de Deus no Egito.
Como uma legenda para a fotografia de Jesus segurando o pão e o cálice naquela que seria a última ceia com os seus discípulos, surgiu a expressão de João Batista para clarear o entendimento daqueles doze homens: “Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”.
Foi então que lembraram do primeiro sinal miraculoso relaizado por Jesus. Numa festa de casamento em Caná da Galiléia, Jesus transformou a água das talhas da purificação em vinho. O sangue de Jesus faria o que os rituais cerimoniais jamais foram capazes de fazer: libertar os homens de sua maldade. Ainda perplexos perceberam que de nada adiantava submeter-se ao rito sem lavar a alma. E adquiriram a convicção de que somente o sangue de Jesus poderia lhes penetrar as profundidades do coração.
Num abrir e fechar de olhos toda a estrutura da religião de Israel ganhou sentido. E desmoronou. O templo de Jerusalém, os sacerdotes, os sacrifícios e os sábados ficaram ofuscados, como sombra de uma realidade incrivelmente mais sublime. Agora que estavam diante do Cristo, olharam para trás e viram toda a estrutura sacrificial prescrita na Lei como algo que já não havia porque preservar.
Naquele dia ganharam a consciência de que Deus não habita templos feitos por mãos humanas; o sangue de animais é insuficiente para transformar os homens de dentro para fora; e ninguém, exceto Jesus Cristo, poderia fazer mediação entre Deus e os homens. Compreenderam que “Deus é espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade”. Discerniram que a religião que é “religião de verdade, que agrada a Deus, o Pai, é esta: cuidem dos necessitados e desamparados que sofrem e não entrem no esquema de corrupção deste mundo que não tem Deus”.
Aos poucos foram percebendo que não precisavam mais frequentar o templo, pois estavam livres da necessidade de oferecer sacrifícios a Deus. Concluíram que também não precisavam mais dos sacerdotes como mediadores de seus sacrifícios, pois Jesus os ensinou e garantiu que todos podiam invocar a Deus, o Pai, em seu nome. Ganharam consciência de que todo dia é sagrado, Deus é acessível em todo lugar, e que todas as pessoas que têm fé em Jesus estão livres dos rituais e cerimoniais da religião. Foram arrebatados pela ideia de que o verdadeiro lugar da adoração é o coração, e que sagrado mesmo é o espírito humano unido ao Espírito de Deus.
Enquanto se espalhavam pelo mundo se dedicaram a explicar porque não tinham templo, não tinham sacerdotes, não tinham rituais de purificação, e não tinham festas sagradas. Empenharam suas vidas a demonstrar que adorar não era outra coisa senão desfrutar com alegria a vida concedida por Deus, povoar a terra e cuidar do mundo como quem cuida de um jardim. Por onde passavam, anunciavam a liberdade do Cristo. Os homens escravizados pelos rituais, romarias aos templos e cerimoniais de sacrifícios se abriam para o amor de Deus e do seu Cristo, experimentavam extraordinária liberdade, e passavam a viver inundados pelo Espírito de amor. No rastro de sua mensagem deixavam desmoronados os impérios daqueles que em nome de Deus mantinham as consciências escravizadas aos dogmas, aos ritos e aos pesadíssimos códigos morais.
Não demorou muito para que os seguidores de Jesus Cristo começassem a ser perseguidos. Ninguém anuncia a liberdade impunemente. Mas essa não foi a maior surpresa. O que impressionou os discípulos de Jesus não foi o ódio dos manipuladores de consciências: foi o ódio das consciências manipuladas. Os discípulos, então, deram-se conta de que a liberdade que anunciavam não era recebida como dádiva, mas como fardo. Descobriram que a maioria dos homens é mesmo covarde, melindrosa e ignorante. Prefere o rigor do controle religioso, os rituais e os lugares sagrados de cultos, e seus ridículos tiranos. Os discípulos custaram a acreditar que as multidões escolheriam a escravidão. Em vez da consciência livre, as regras. Em vez da adoração em espírito e em verdade, os rituais. Em vez de santificar o mundo e o tempo, os templos. Em vez de assumir a responsabilidade por si mesmos, os sacerdotes.
Os anos se passaram e aos poucos o mundo outrora iluminado pelo Cristo voltou à sombra. E a cada dia um novo templo é inaugurado. E para lá correm as massas, subjugadas pelos sacerdotes que dos seus altares fazem promessas falsas em nome de Deus, manipulam consciências e se aproveitam da boa fé dos que sofrem.
Mas a semente, ainda que sufocada por espinhos, arrebatada pelas aves de rapina e na superfície dos pedregais, encontra sempre caminhos para florescer e dar fruto. Aqui e ali as trevas são quebradas pelas pequeninas cidades edificadas edificadas sobre os montes. O sal tempera a terra. E o sol já vai nascer novamente.